Desde a nova ordem constitucional pós-ditadura, é possível citar dezenas de casos de violência e abusos praticados por policiais
* Sociólogo, coordenador do PPG em Ciências Sociais da PUCRS e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Os eventos que denotam a persistente incompatibilidade das nossas estruturas policiais para atuar em democracia parecem não ter fim. Desde que ingressamos em uma nova ordem constitucional pós-ditadura, é possível citar, de memória, dezenas de casos de violência e abusos praticados por policiais. A polêmica em torno da mensagem encaminhada por um Tenente-Coronel da Brigada Militar (que, diante de demanda de proteção policial contra assaltantes, encaminhada por jornalistas que cobriam um movimento de ocupação cidadã do espaço público no Parque da Redenção, sugeriu que chamassem o Batman, já que naquela hora “cidadãos de bem” não deveriam estar naquele local, e os que lá estavam “não gostavam da polícia”), traz novos contornos e possibilidades interpretativas para a compreensão de uma mentalidade policial que se constitui em uma barreira para a efetivação do direito à segurança pública.
Uma polícia capacitada e valorizada é elemento chave para a prevenção ao delito e a melhoria da sensação de segurança da população. Estabelecendo vínculos de confiança com a comunidade, coletando provas para o esclarecimento de crimes e a responsabilização de seus autores, administrando conflitos de proximidade e reprimindo facções armadas que dominam territórios, a polícia tem sido protagonista em países que tiveram sucesso na redução da violência. Na base dessas experiências, o reconhecimento da necessidade de reformas para aumentar o controle e a transparência da atividade policial.
No Brasil, experiências deste tipo têm sido vivenciadas desde meados dos anos 90, como os Grupamentos de Policiamento em Áreas Especiais, liderados pelo Tenente-Coronel Antônio Carlos Carballo Blanco, da PM carioca, e os diversos projetos de policiamento comunitário. Também no Rio Grande do Sul tivemos tentativas importantes de modernização das relações da polícia com a sociedade, como a aproximação com a Universidade promovida pelo secretário José Eichemberg, ou os cursos de formação integrada promovidos pelo secretário José Paulo Bisol. Buscava-se a sensibilização dos policiais para as demandas específicas por segurança e garantia de direitos de grupos sociais vulneráveis, como a comunidade LGBT, jovens negros e moradores de periferia, mulheres vítimas de violência e trabalhadores sexuais.
Apesar do esforço e do voluntarismo de alguns, as experiências inovadoras esbarram em uma cultura policial voltada ao combate e à supressão do “inimigo”. Fruto de um longo histórico institucional, que tem na sua origem a constituição de forças policiais em uma sociedade colonial e escravocrata, o caráter autoritário e violento das relações entre a polícia e determinados grupos sociais no Brasil foi reforçado, ao longo do período republicano, pela utilização da polícia como instrumento de governo para a repressão da dissidência política, durante o Estado Novo e a ditadura instaurada em 64.
Depois de quase três décadas de construção democrática, o resultado é que temos, de um lado, uma sociedade mais complexa e diversificada, em que diferentes grupos e movimentos buscam direitos e reconhecimento, pretendendo ingressar em um espaço de cidadania que historicamente é acessível apenas aos detentores de privilégios. De outro lado, instituições policiais que ainda mantém uma estrutura arcaica, derivada da combinação de um modelo burocrático-cartorário com o militarismo no combate ao inimigo.
Não surpreende, portanto, que diante da falta de planejamento e de políticas consistentes de prevenção ao delito e redução da violência, da carência de estrutura, de valorização profissional e de efetivo, e pressionada por uma opinião pública cada vez menos tolerante com a insegurança pública, alguns policiais reajam explicitando uma mentalidade que simplifica a complexa realidade e separa a clientela em “cidadãos de bem” e “vagabundos”. Os primeiros, mais idealizados do que reais, merecem a atenção e o respeito dos agentes do Estado, embora devam mais obediência do que sejam merecedores de um efetivo serviço público. Aos segundos, o tratamento é o que ao longo da história a polícia brasileira foi orientada a oferecer aos subcidadãos: permanente desconfiança, abuso de autoridade, práticas violentas de obtenção de “confissões” e sujeição pela criminalização ou a sua ameaça.
Ultrapassar este cenário um tanto desolador nas relações entre as polícias e a cidadania no Brasil tem sido o desafio colocado para governantes e gestores da segurança desde a redemocratização. Passar a limpo um passado de arbítrio e discriminação, e compreender que a melhor forma de lidar com a diferença e a complexidade social é a incorporação de todos aos direitos de cidadania, talvez seja a lição que ainda mereça ser repetida nas academias de polícia. Sob pena de continuarmos sendo reprovados no mais elementar quesito da vida coletiva em democracia: o respeito ao outro e à diferença. Não queremos o Batman, mas uma polícia cidadã.
* Sociólogo, coordenador do PPG em Ciências Sociais da PUCRS e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Os eventos que denotam a persistente incompatibilidade das nossas estruturas policiais para atuar em democracia parecem não ter fim. Desde que ingressamos em uma nova ordem constitucional pós-ditadura, é possível citar, de memória, dezenas de casos de violência e abusos praticados por policiais. A polêmica em torno da mensagem encaminhada por um Tenente-Coronel da Brigada Militar (que, diante de demanda de proteção policial contra assaltantes, encaminhada por jornalistas que cobriam um movimento de ocupação cidadã do espaço público no Parque da Redenção, sugeriu que chamassem o Batman, já que naquela hora “cidadãos de bem” não deveriam estar naquele local, e os que lá estavam “não gostavam da polícia”), traz novos contornos e possibilidades interpretativas para a compreensão de uma mentalidade policial que se constitui em uma barreira para a efetivação do direito à segurança pública.
Uma polícia capacitada e valorizada é elemento chave para a prevenção ao delito e a melhoria da sensação de segurança da população. Estabelecendo vínculos de confiança com a comunidade, coletando provas para o esclarecimento de crimes e a responsabilização de seus autores, administrando conflitos de proximidade e reprimindo facções armadas que dominam territórios, a polícia tem sido protagonista em países que tiveram sucesso na redução da violência. Na base dessas experiências, o reconhecimento da necessidade de reformas para aumentar o controle e a transparência da atividade policial.
No Brasil, experiências deste tipo têm sido vivenciadas desde meados dos anos 90, como os Grupamentos de Policiamento em Áreas Especiais, liderados pelo Tenente-Coronel Antônio Carlos Carballo Blanco, da PM carioca, e os diversos projetos de policiamento comunitário. Também no Rio Grande do Sul tivemos tentativas importantes de modernização das relações da polícia com a sociedade, como a aproximação com a Universidade promovida pelo secretário José Eichemberg, ou os cursos de formação integrada promovidos pelo secretário José Paulo Bisol. Buscava-se a sensibilização dos policiais para as demandas específicas por segurança e garantia de direitos de grupos sociais vulneráveis, como a comunidade LGBT, jovens negros e moradores de periferia, mulheres vítimas de violência e trabalhadores sexuais.
Apesar do esforço e do voluntarismo de alguns, as experiências inovadoras esbarram em uma cultura policial voltada ao combate e à supressão do “inimigo”. Fruto de um longo histórico institucional, que tem na sua origem a constituição de forças policiais em uma sociedade colonial e escravocrata, o caráter autoritário e violento das relações entre a polícia e determinados grupos sociais no Brasil foi reforçado, ao longo do período republicano, pela utilização da polícia como instrumento de governo para a repressão da dissidência política, durante o Estado Novo e a ditadura instaurada em 64.
Depois de quase três décadas de construção democrática, o resultado é que temos, de um lado, uma sociedade mais complexa e diversificada, em que diferentes grupos e movimentos buscam direitos e reconhecimento, pretendendo ingressar em um espaço de cidadania que historicamente é acessível apenas aos detentores de privilégios. De outro lado, instituições policiais que ainda mantém uma estrutura arcaica, derivada da combinação de um modelo burocrático-cartorário com o militarismo no combate ao inimigo.
Não surpreende, portanto, que diante da falta de planejamento e de políticas consistentes de prevenção ao delito e redução da violência, da carência de estrutura, de valorização profissional e de efetivo, e pressionada por uma opinião pública cada vez menos tolerante com a insegurança pública, alguns policiais reajam explicitando uma mentalidade que simplifica a complexa realidade e separa a clientela em “cidadãos de bem” e “vagabundos”. Os primeiros, mais idealizados do que reais, merecem a atenção e o respeito dos agentes do Estado, embora devam mais obediência do que sejam merecedores de um efetivo serviço público. Aos segundos, o tratamento é o que ao longo da história a polícia brasileira foi orientada a oferecer aos subcidadãos: permanente desconfiança, abuso de autoridade, práticas violentas de obtenção de “confissões” e sujeição pela criminalização ou a sua ameaça.
Ultrapassar este cenário um tanto desolador nas relações entre as polícias e a cidadania no Brasil tem sido o desafio colocado para governantes e gestores da segurança desde a redemocratização. Passar a limpo um passado de arbítrio e discriminação, e compreender que a melhor forma de lidar com a diferença e a complexidade social é a incorporação de todos aos direitos de cidadania, talvez seja a lição que ainda mereça ser repetida nas academias de polícia. Sob pena de continuarmos sendo reprovados no mais elementar quesito da vida coletiva em democracia: o respeito ao outro e à diferença. Não queremos o Batman, mas uma polícia cidadã.
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